A ARTE DE PREGAR

Purushatraya Swami

Um tema que sempre surge nas conversas entre devotos é o comentário de que o crescimento de nosso movimento é muitíssimo lento, se compararmos com certos grupos religiosos de apelo mais popular ou outras correntes espiritualistas de moda. Todos, em geral, gostariam de ver os templos cheios de brahmacaris, congregações fortes e ativas e templos por toda parte. Nossa realidade é, no entanto, outra. As novas adesões ocorrem em doses homeopáticas. Entra ano, sai ano, estamos sempre vendo as mesmas caras. E, por falta de apoio maior, todo final de mês, os responsáveis de manter em dia os alugueis dos simples imóveis dos nossos templos chegam, às vezes, ao limite da capacidade de suportar as tremendas pressões psicológicas de se viver sempre no vermelho.

A consciência de Krishna é, sem dúvida, bem diferente das religiões convencionais. Estamos sempre buscando atingir pessoas normais e sãs, que, hoje em dia, são cada vez mais raras. Muitas dessas pessoas já tˆm suas “religiões” seculares, como vegetarianismo, ecologia, new age, hatta-yoga, etc. Outros são praticantes fanáticos dos prazeres sensuais e desdenham a espiritualidade. Vemos que as religiões que se especializaram em resgatar os desesperados, que estão no fundo do poço, estão com suas casa cheias e transformam-se em verdadeiros negócios empresariais.

Uma razão que afeta tremendamente a nossa pregação é o despreparo dos devotos em passar a mensagem da consciência de Krishna de uma maneira clara, sensata, inteligente e adequada ao tempo, lugar e circunstância.

Qualquer devoto deve estar sempre preparado para responder as perguntas. Ele deve individualmente pensar e meditar nos temas mais comuns que normalmente aparecem como perguntas de pessoas curiosas. Perguntas como: Quem é Krishna? O que o levou a tornar-se um devoto? etc., devem sempre estar “na ponta da língua”. A impressão que me dá ao ver a inaptidão dos devotos em responderem perguntas ao vivo na TV é que eles nunca pensaram sobre o assunto que estão sendo indagados publicamente. Esses segundos na TV são momentos preciosíssimos que não podem ser desperdiçados. Por outro lado, se a resposta do devoto for clara e natural, isso causa um impacto muito forte na audiência.

Essa inaptidão em se expressar parece ser uma característica bem brasileira. Nossa informalidade é interessante e simpática, mas tem certos momentos que não funciona e seu efeito é, em muitas ocasiões, contraproducente. É absolutamente necessário que aprendamos a nos dirigir corretamente ao público, com segurança e clareza. Uma vez, em Bombaim, no templo de Chowpati, eu dei uma palestra para um público de mais de mil pessoas. Minutos antes da palestra, um devoto veio até mim e me pediu que lhe desse alguns dados pessoais, no que ele anotou num papelzinho. Na hora da apresentação ao público, constatei que não era a mesma pessoa a quem tinha falado, mas um outro jovem brahmacari, que tinha o tal papelzinho nas mãos. Sua apresentação me surpreendeu. Ele nem sequer me conhecia, mas fez uma apresentação impecável em todos os sentidos. Outra ocasião, na áfrica do Sul, fiquei impressionadíssimo com a apresentação pública de um devoto local. Era uma cerimônia depois do Ratha-yatra, com a presença de dois políticos importantes, membros do parlamento, e vários sannyasis. A maneira com que ele apresentou não ficou nada a desejar ao mais experiente apresentador do Jornal Nacional da TV Globo. Temos que nos aperfeiçoar nessa arte. O que tenho visto mesmo entre líderes e devotos seniores, com raras e louváveis exceções, são apresentações ao público pobres, cheias de trejeitos e cacoetes. Um devoto contou-me um fato que acontecera com ele. Depois de uma fala em público, um estrangeiro, que estava ainda aprendendo nosso idioma, chegou para ele e perguntou: O que é esse tal de “né” que você tanto fala?...

As horas que antecedem uma apresentação pública devem ser dedicadas à profunda concentração e preparação psicológica. O ser humano tem uma capacidade única de antever os acontecimentos. Ele pode “viver” em sua mente momentos que não aconteceram na realidade, mas tem toda a probabilidade de acontecerem no futuro próximo. Todo conferencista, por mais experiente que seja, projeta em sua mente a situação que ele vai viver. Ele condiciona sua fala às condições do local e características do público a que ele vai se dirigir. Ele está perfeitamente preparado para o que vai acontecer e então ficará bem à vontade e seguro. Dessa forma ele poderá expressar-se com toda naturalidade e passará sua mensagem com precisão e clareza.

Por outro lado, sem essa preparação, qualquer fala ao público poderá ser um fiasco— “Dá um branco” e, na hora H, a pessoa esquece das coisas mais obvias. Uma vez, acompanhando um grupo de devotos para uma apresentação em um programa de TV, fui testemunha de que houve, durante a longa viagem até ao local do programa, muita prajalpa, tama-guna e comilança entre esses devotos. Depois do programa, quando comentávamos que as perguntas feitas não foram bem respondidas pelos devotos, um comentário surgiu: “Fui pego de surpresa...” Uma desculpa esfarrapada, inaceitável...

Outra coisa importantíssima que deve prevalecer em nossa pregação ao público em geral é que devemos ter a habilidade de tratar certos temas que têm a tendência de causar certa comoção e desconforto nos ouvintes. Um tema que, se não for bem apresentado, pode causar certas suscetibilidades é a questão dos quatro princípios. O devoto deve ter a sensibilidade e a habilidade de apresentar esse importante ponto da consciência de Krishna sem chocar a platéia. Muitas vezes, ao invés de dizer: “Não comer carne, nem peixes e ovos”, podemos simplesmente dizer: “Tornar-se vegetariano”. Ao invés de algo negativo, damos uma afirmativa positiva. Às vezes para enfatizar o fato de que abolimos toda e qualquer intoxicação, damos muita ênfase ao consumo de café, que é consumido pelas pessoas em geral de forma inocente. Esse detalhe pode ser importante para aqueles que querem galgar níveis mais e mais elevados de consciência, mas para uma pessoa sem nenhuma noção prévia sobre as sutilezas espirituais, isso poderá soar como algo fanático. Muitas vezes, certos devotos evitam o café mas consomem outros alimentos industrializados que contém substâncias tão nocivas quanto a cafeína para a consciência. Quer dizer, essas coisas podem virar meramente um tabu, falado da boca para fora. Isso, muitas vezes, torna-se contraproducente na pregação, pois sugere um tipo de purismo e puritanismo artificial, que afasta pessoas inteligentes e sensíveis. Outros devotos, a despeito de seguirem os quatro princípios, têm princípios morais duvidosos. Questionamos aqui sua potencia espiritual na pregação sobre os princípios reguladores.

Devemos evitar na pregação pública, para um público que não teve nenhum, ou muito pouco, contato com os devotos, tópicos que sejam excludentes, isto é, que enfatizam uma grande distancia entre os karmis e devotos. Muito melhor é buscar temas que nos unem, e não que nos afastem. Se uma pessoa toma uma atitude defensiva no primeiro contato com os devotos, dificilmente mudará sua posição. Como se diz: “A primeira impressão é a que fica”.

Participei, a um par de anos atrás, de um congresso inter-religioso a nível mundial. Nesse congresso tomei parte de um workshop sob o tema “Construindo a Paz”. O facilitador era uma pessoa com muita experiência em conflitos e guerras por todo o planeta. Em certa altura de nosso workshop ele propôs que escrevêssemos uma lista de coisas que existem dentro de nossa religião que excluem as pessoas de fora. Nosso grupo era muito eclético: tinha pessoas de umas dez nacionalidades diferentes— asiáticos, europeus, africanos, etc.— cada um praticamente de uma religião diferente. Depois disso reunimo-nos em pequenos grupos para discutir nossas diferenças e achar pontos em comum. A conclusão que se chega é que ao enfatizar as diferenças, o germe da discórdia e da desconfiança estará sempre presente.

Espero que os devotos que estão lendo essas linhas compreendam exatamente o que quero me referir. Obviamente não queremos comprometer os princípios que seguimos e devemos ser cada vez mais estritos em nosso sadhana pessoal, mas temos que ter a sensibilidade e a habilidade para fazer com que mais e mais pessoas fiquem atraídas por Krishna, adotem o serviço devocional como prática espiritual de vida e adquirem força interior para vencer as energias animalescas que convivem em nós e puxam a consciência para baixo.

Constatamos que, infelizmente, a maioria dos devotos são despreparados filosoficamente. Sem o cultivo de anos e anos lendo e relendo os livros de Srila Prabhupada, a possibilidade de maestria no conhecimento da consciência de Krishna fica muito reduzida. Muitos devotos se contentam somente com o conhecimento básico e acham que já é suficiente. Muitos até não têm interesse nas aulas, pois irá escutar coisas que eles já conhecem. O fato é que para que possamos pregar, temos que interiorizar e vivenciar todo esse conhecimento que já sabemos intelectualmente. Isso requer muita prática e muitas horas lendo e ouvindo. Mesmo já conhecendo bem os temas expostos numa classe de Bhagavad-gita ou Srimad-Bhagavatam, temos que ficar muito atentos para aprendermos diversas maneiras de apresentar o mesmo tema. Quando escutamos vários oradores diferentes, muitas idéias naturalmente aparecerão em nossa mente que irão enriquecer a nossa própria pregação.

Para finalizar contarei três episódios significativos na pregação no Brasil, que vêm à minha mente nesse momento. Certamente existem muitos outros exemplos, mas por ora vamos nos contentar com esses três. O primeiro foi no início dos anos oitenta. Os devotos costumavam participar do encontro anual de comunidades rurais, onde se reuniam todas as “tribos” alternativas, muito em voga naquela época. O zelo de pregação de alguns devotos, forçando muito nos kirtanas e tentando com insistência “fazer a cabeça do pessoal” causou uma certa irritação geral e muitos tornaram-se antagônicos em relação aos devotos. Paramgati Maharaj era muito influente junto aos alternativos e, compreendendo bem a situação, promoveu uma reunião dos devotos antes do encontro do seguinte ano. Nessa reunião ficou estabelecido que a nossa estratégica de pregação para os encontros que se seguissem seria simplesmente essa: “Fica proibido qualquer tipo de pregação proselitista. Vamos participar dos encontros somente para servir.” A coisa funcionou e causou uma revolução nessa pregação. As pessoas ficaram totalmente surpresas com a mudança radical no comportamento dos devotos e passaram a apreciar os devotos de coração. Quer dizer, a melhor pregação naquele momento foi, simplesmente, “não pregar”. Dois anos depois, Nova Gokula foi escolhida para sediar esse Encontro Nacional das Comunidades Alternativas e foi o maior e mais bem sucedido encontro que já aconteceu. (Lembra-se Lilananda?...)

Houve uma celebração ecumênica pela paz promovida pelo então cardeal de São Paulo Dom Evaristo Arns. Ele convidou representantes de todas as religiões e entidades espiritualistas. A cerimônia aconteceu numa grande catedral da cidade. Lokasakshi Prabhu, experiente em encontros inter-religiosos, compreendeu bem aquela situação particular e no ato de inscrever-se, ao invés de se colocar como representante do movimento Hare Krishna, ele afirmou ser o representante do Hinduismo. O resultado foi que, na primeira fila, ficavam as cadeiras dos representantes das religiões oficiais do mundo: Cristianismo, Judaísmo, Islamismo, Hinduismo, Budismo. E atrás deles estavam os demais, designados pela igreja católica como “Seitas”. Normalmente estaríamos juntos com o pessoal detrás, como estavam muitas pessoas qualificadas que não representavam essas linhas religiosas principais. Só os representantes das religiões formais tiveram o privilegio de discursar nesse mega evento e, entre eles, o nosso representante Hare Krishna, o que deixou muita gente atônita.

Durante o Encontro para Nova Consciência, que acontece todo ano durante o carnaval, em Campina Grande, Candra-mukha Swami estava participando de um painel em que participavam também outras personalidades, entre eles o conhecido escritor católico Leonardo Boff. Na hora das perguntas, alguém colocou para Maharaj uma questão envolvendo o tema “reencarnação”, o que deixou o escritor católico visivelmente embaraçado e incomodado, visto que os católicos rejeitam esse princípio. Essa “deixa” poderia ter sido aproveitada por um pregador inexperiente e ávido para desbancar qualquer posição em contrário à doutrina reencarnacionista. Maharaj tinha “a faca e o queijo na mão”, mas, vendo o desconforto que isso causaria à pessoa que estava a seu lado, preferiu não responder essa pergunta e passar assim para a seguinte pergunta. O teatro inteiro lotado percebeu essa atitude do devoto e somente essa atitude foi milhões de vezes mais convincente do que inúmeros argumentos racionais.

Srila Prabhupada ki jay!


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