"Mantra" é uma entre várias palavras do idioma sânscrito que tem se infiltrado em nossa língua. Essa e várias outras palavras têm passado por um processo de aportuguesamento, tornando-se correntes em nosso idioma. Já conquistaram, inclusive, um lugarzinho nos mais conceituados dicionários da língua portuguesa. O sânscrito foi, num passado remoto, o idioma corrente da gloriosa Índia védica. Hoje em dia, é considerado pelos meios acadêmicos do Ocidente como uma "língua morta". Existe, no entanto, um forte movimento nos meios acadêmicos indianos, para restabelecer o sânscrito como o idioma corrente entre o povo, substituindo, assim, as dezenas de línguas oficiais e dialetos regionais encontrados na Índia. Isso certamente traria um sentido maior de unidade no país, afirmam eles.
A questão aqui é confirmar se o sânscrito está realmente "morto", pois vemos que esse idioma milenar tem fornecido uma série de palavras que se incorporaram ao nosso vernáculo. Numa rápida passada de olhos encontramos no "Novo Aurélio" várias palavras oriundas da mesma fonte, como por exemplo: ioga, hata-ioga, assana, carma, krishna, hare krishna, mandala, veda, védico, vedanta, upanixade, tantra, darsana, darma, pranama, prana, bramanas, brâmane, guru, Buda, atma. A lista certamente vai bem mais longe. Isso demonstra que certos valores culturais dessa tradição milenar estão resistindo ao crivo do tempo e ainda estão vivos e atuantes, conquistando gradualmente espaços na vida moderna contemporânea.
O sânscrito é considerado a língua mãe da humanidade. Sua gramática é elaboradíssima. Os mais antigos textos sagrados- os quatro Vedas, os Upanishades, os Puranas, os épicos Ramayana e Mahabharata, Bhagavad-gita e muitos outros- são escritos em sânscrito. Uma característica única desse idioma é que uma vasta porção de seu vocabulário é constituído de palavras que expressam, com extrema precisão, os esotéricos e intrincados conceitos referentes à espiritualidade e Transcendência. Nenhuma outra língua no mundo tem tal afinidade com os assuntos espirituais.
Lemos no dicionário Novo Aurélio: "Mantra [Do sânscrito mantra, 'instrumento para conduzir pensamento']. No tantrismo, fórmula encantatória que tem o poder de materializar a divindade invocada." Com referência a essa definição, queremos mostrar que o conceito de "mantra", ao invés de se fechar exclusivamente no tantrismo que, de acordo com o dicionário, é "caracterizado pela magia e ocultismo", pode abrir-se para diferentes enfoques e revelar caminhos de espiritualidade de extremo valor.
O mantra é uma composição de palavras de natureza exclusivamente espiritual, sem nenhuma conotação secular. Essas palavras possuem a potência intrínseca de atuar diretamente na consciência da pessoa. Devido à sua natureza puramente espiritual, o mantra tem o poder de elevar a consciência da pessoa, do nível material ao espiritual. Na consciência espiritual, a consciência individual conecta-se com a Transcendência.
Podemos nos conectar com tais planos de consciência superiores basicamente de duas maneiras. Primeiramente, desenvolvendo-se uma potencialidade específica intrínseca da natureza humana- a intuição espiritual, ou como normalmente é designada- a fé. Quando a fé está consubstanciada num intelecto purificado e forte, as possibilidades de se captar insights da Transcendência são ilimitadas. A conexão da consciência individual com a Transcendência é feita a partir da meditação, da oração, da reflexão, da contemplação e, também, do doar-se.
Outra possibilidade de conexão com a Transcendência é através da prática de mantra-yoga. Essa prática pode ser sonora ou mental. A grande virtude do mantra é que o próprio som do mantra é investido de poder para desvendar e revelar realidades concernentes a planos de consciência superiores. É afirmado nas escrituras védicas que os nomes que designam a Divindade têm o poder, embutido na própria palavra, de revelar essa Divindade à consciência individual. Como é afirmado no texto sagrado Padma Purana- abhinnatvan nama-naminoh- "existe identidade (não-diferença: abhinnatva) entre o nome e aquilo que está sendo nomeado".
No plano de existência material-fenomenal, empírico e relativo- em que vivemos, existe sempre uma dicotomia qualitativa entre a palavra e seu significado. A palavra "água" e a substância "água" são entidades diferentes. A conexão entre a palavra e a substância é meramente subjetiva. O pronunciar de "água" não aplaca a sede. Já, no plano absoluto espiritual, a palavra em si encerra a potencia vibratória que representa. Mesmo não conhecendo o significado, a vibração sonora do mantra vai atuar na consciência de quem o emite, assim como de quem escuta. É como um remédio apropriado para determinada enfermidade- mesmo sem conhecermos sua fórmula somos beneficiados por sua ação curativa, obviamente se for usado de acordo com as prescrições médicas.
A repetição sistemática do mantra é, comprovadamente, um eficaz exercício para as funções mentais. Esse é o efeito mais tangível da prática de mantra-yoga. Com essa prática, a mente e o intelecto tornam-se mais 'elásticos', 'flexíveis', fortes, concentrados e controlados. Por outro lado, corrige-se a tendência à dispersão, falta de foco, preguiça mental, em suma, todos os tipos de limitações e travações mentais. Essa prática pode ser executada através da meditação silenciosa ou repetição sonora, como um murmúrio, denominado japa. Em ambas práticas, prescreve-se uma postura sentada ereta (ásana), mente livre de qualquer turbulência ou distração e total concentração no som do mantra.
O mantra também pode ser cantado em voz alta, agregando-se a ele uma melodia. Isso chama-se kírtana, ou sankírtana, quando o canto é feito em grupo. Esse canto pode também estar associado à dança. Essa prática, se executada com absorção, espontaneidade e arrebatamento, é considerada como uma meditação dinâmica. O importante nessa prática é a pura expressão da alma. Deve-se, portanto, coibir as expressões corpóreas sensuais, que prendem a consciência ao plano físico grosseiro. O contato sistemático com o som puro do mantra purifica a mente. A pessoa adquire maior capacidade para manter sob controle as chamadas 'paixões irracionais', como, ira, cobiça, inveja, ciúme, luxúria, assim como muitas outras dinâmicas mentais perversas, como diferentes tipos de compulsão, medos injustificados, depressão, tendências à lamentação, auto-piedade, intriga, fofoca, etc.
O mantra abre os canais da consciência para percepções supra-sensoriais e sintoniza a consciência com níveis vibratórios superiores. Isso ocorre simultaneamente em duas vias: emissão e recepção. A emissão de vibração sonora mântrica, através de ação individual consciente e deliberada, faz com que a mente e a consciência, como um todo, vibre na mesma freqüência espiritual do mantra. Por sua vez, essa vibração espiritual emitida irá atrair uma vibração espiritual arquetípica, de mesma freqüência, presente no éter. Esse mesmo princípio rege o funcionamento de um aparelho receptor comum de radiodifusão, o radio de cabeceira ou o radinho de pilha: ele emite determinada freqüência que, por sua vez, atrai as ondas da mesma freqüência presentes no éter, que estão carregadas com as mensagens sonoras que foram emitidas na estação transmissora. De forma similar, a consciência individual pode conectar-se com a Transcendência e receber energia espiritual pela prática de mantra-yoga. A consciência da pessoa fica sobrecarregada com energia espiritual.
Por fim, a prática do mantra causa uma revolução no coração. Os mais refinados sentimentos de amor a Deus, que podem fazer 'amolecer' os corações mais duros, são 'efeitos colaterais' do mantra. Muitas pessoas, hoje em dia, geralmente com certa escolaridade, mas carentes de cultura espiritual, desenvolvem uma atitude fria, indiferente, crítica e, até, cínica, com respeito à espiritualidade. A tendência é desdenhar a consciência religiosa, considerando-a meramente sentimental e piegas. A idéia de Deus é tida como algo concebido pela mente humana. Considera-se que a fé é um mecanismo mental vicioso para compensar alguma carência psíquica. Com isso, a vida em nosso plano de existência perde todo o caráter sagrado. O próprio fenômeno da consciência e do milagre da vida são tratados com a mesma metodologia mecanicista e reducionista usada na manipulação dos fenômenos e elementos físicos grosseiros. Essa maravilhosa criação cósmica fica reduzida a um fluxo aleatório de forças exclusivamente materiais, sem nenhum vínculo com a Transcendência.
Pois bem, pela prática do mantra pode-se reverter radicalmente esse quadro. É o que podemos chamar 'mudança de paradigma'. Uma nova visão de mundo passa a enfocar mais as maravilhas do fenômeno da vida, assim como a realidade de Deus e nossa dependência nEle. A vida passa a ter um significado, assume uma nova dimensão. O meio ambiente, por mais adverso que seja, deixa de implacavelmente influenciar a consciência. A consciência desperta, superando assim o perigo da alienação, ignorância e auto-destruição. Olha-se sempre para frente- do passado, só os ensinamentos derivados das experiências. A morte, que normalmente é tida como o terror da vida, passa ser o marco de uma renovação super-auspiciosa- fim de um ciclo e começo de um outro, melhor. Por fim, no coração acende-se a chama beatífica do amor a Deus, a máxima conquista da existência terrena.
Dentre os muitos mantras da tradição védica, um, particularmente, tem uma importância especial. Trata-se do maha-mantra Hare Krishna. (Maha-mantra significa "grande mantra") Esse mantra védico está enunciado no Kalisantarana Upanishad, verso seis do quinto capítulo. É formado por três palavras-Hare, Krishna e Rama-que se combinam de um jeito bem particular:
hare krishna hare krishna krishna krishna hare hare hare rama hare rama rama rama hare hare
Essa mesma escritura explica: "Essas dezesseis palavras do maha-mantra tem o poder de neutralizar os efeitos negativos da sofrida era de Kali (Kali-yuga) em que vivemos. Todas as escrituras confirmam que não existe processo mais potente de elevação espiritual que o canto ou meditação desse mantra."
Tenho tido uma experiência diária com o maha-mantra nos últimos trinta anos. Nessa prática, usa-se um rosário com cento e oito contas, chamado japa-mala. Uma das experiências que podemos ter, depois de todos esses anos, é que o maha-mantra continua com o mesmo frescor que teve ao início de nossa prática. Ouso, inclusive dizer que se torna cada vez mais deleitável e renovado. Essa é uma prova cabal de sua natureza transcendental. Qualquer som secular já teria chegado aos limites da saturação.
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